terça-feira, 10 de janeiro de 2012

As perversas chuvas de verão - revival


Já escrevi em outro artigo (http://www.apsicanalise.com/blog-psicanalise/116-as-perversas-chuvas-de-verao.html)  como as tragédias de verão (sempre anunciadas como trombetas do apocalipse) possuem uma estrutura perversa. Faz praticamente um ano que escrevi esse artigo. O que vemos hoje, quando o governo anuncia uma tal de “Força Nacional de apoio técnico de emergência” (http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1031898-governo-anuncia-forca-de-especialistas-para-monitorar-desastres.shtml) já beira a psicose pura e simples.
Classicamente o delírio é uma tentativa psicótica de reconstruir a realidade insuportável, tornando-a no mínimo habitável, ainda que com profundo sofrimento. Geralmente não é toda a realidade que é negada, mas “partes” dela. Alguém em sã consciência que essa tal “força tarefa” vai RESOLVER algo? Lógico que alguma coisa é melhor que nada ... mas ... pensando bem, essa forma de pensar nos faz sempre ficar com essa tal “alguma coisa” e não ir para a solução. Padecemos desse mal de sempre escolher essa “alguma coisa”.
A solução neurótica pressupõe um sofrimento diferente – que vamos nos render a realidade, sem falseá-la. Podemos até mentir para nós mesmos, mas não aos outros. O que pressupõe que tanto a população quanto o governo vão ter que indispor uns com os outros para resolver o problema da ocupação do solo. O Estado não é um deus que deve resolver todos os problemas e nem vai consegui-lo, e que a população vai ter que assumir mais responsabilidades por suas próprias vidas (não se constrói casa em área de risco e depois se culpa outra pessoa) e pelo seu voto (a maioria nem se lembra em que deputado votou nas ultimas eleições).
Dizer não aos filhos é algo muito duro, mais ainda quando eles podem através do voto escolher novos pais. Esse é o desafio do pacto social brasileiro – o estado não é o nosso pai, quando muito é padrasto de contos de fadas.
Ale Esclapes

sábado, 18 de dezembro de 2010

Homossexualidade e perversão

Durante muito tempo a homossexualidade foi entendida como uma perversão do ponto de vista da psicanálise, e talvez ainda hoje alguns teóricos tenham essa visão. Mas isso ainda é uma interpretação da lógica freudiana baseada na noção pênis com vagina contida nos “Três ensaios da sexualidade” – uma visão no mínio discutível.

Se olharmos a própria lógica dos conceitos psicanalíticos veremos que na formação do superego reside uma diferença fundamental entre esses conceitos – a dinâmica superegoica nas perversões é muito diferente que na homossexualidade. Por sua vez, não se pode apontar uma diferença dinâmica entre a homossexualidade e a heterossexualidade no que tange ao superego.

Freud coloca no seu artigo “A negação” que diferente do funcionamento neurótico, cujo mecanismo de defesa do ego básico é a repressão, na perversão é o mecanismo da “denegação” que a caracteriza. Ambos os mecanismos operariam na base dos Complexos de Édipo e Castração.

Donald Meltzer no seu brilhante “Estados sexuais da mente” nos dá uma interpretação um pouco mais ampla desses mecanismos perversos e nos diz que eles agem na base do “como se”. Baseado em uma interpretação bioniana do Complexo de Édipo onde o imperativo seria a mentira, e não a questão da Castração (no caso dos meninos), ele nos fala de uma parte da personalidade que funciona “como se” a realidade não existisse.

Isso em si não pode ser ligado a homossexualidade – não tem nem o menor sentido, a não ser se colocarmos como regra da vida o pênis com a vagina e tratarmos todo o mais como uma aberração, esquecendo um outro conceito da psicanálise – que o homem é um ser de desejos e não de instintos.

O perverso mata, “come criancinhas”, como se nada disso tivesse conseqüências danosas aos envolvidos. Não existe culpa, pois esses mecanismos agem muito antes da formação do superego. Logo, a Le i não pode ser inscrita no superego.

Na homossexualidade ao contrário, não existe esse mecanismo. Sabe-se que existem homem e mulheres, sabe-se a diferença entre eles, sabe-se da Lei e sabe-se que o desejo é por alguém do mesmo sexo. O que muitas vezes o que existe é o contrário do que um certo credo psicanalítico propaga – como o desejo é contrário as expectativas da sociedade, se advêm um forte sentimento de culpa, as vezes de inadequação – com certeza não é fácil “sair do armário”. Esse próprio sentimento denuncia que a homossexualidade não tem nada a ver com a perversão. E é esse mesmo sentimento que coloca homossexuais e heterossexuais sobre a mesma estrutura de funcionamento superegóico.

Portanto do ponto de vista da própria psicanálise só se pode colocar homossexualidade e perversão sobre o mesmo teto se tiver em mente que o valor absoluto seja pênis com vagina. Estruturas perversas podem estar presentes independente da orientação sexual – basta olhar os presídios e manicômios para se atestar essa obviedade.

Por Ale Esclapes

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domingo, 21 de novembro de 2010

Homofobia e a violência da intolerância - Por Navi Pillay

Seth Walsh tinha 13 anos quando foi até o jardim da casa onde morava com sua família, na Califórnia, e se enforcou. Seth é um dos seis adolescentes que sabemos que se suicidaram nos EUA, só em setembro, devido ao que sofreram nas mãos de perseguidores homofóbicos.

Nas últimas semanas, vimos acontecer uma série de ataques contra gays, lésbicas, bissexuais ou transexuais no mundo. Em Belgrado, no dia 10 de outubro, um grupo de manifestantes atirou coquetéis molotov e granadas paralisantes contra uma parada do orgulho gay, ferindo 150 pessoas.

Em Nova York, em 3 de outubro, três jovens homossexuais foram sequestrados, levados para um apartamento desabitado e torturados.

Na África do Sul, realizou-se em Soweto uma manifestação para chamar a atenção para as violações contra as lésbicas nas "townships", atos que os seus autores tentam justificar como uma tentativa de "corrigir" a sexualidade das vítimas.
A homofobia, como o racismo e a xenofobia, existe em diversos graus, em todas as sociedades. Todos os dias, em todos os países, indivíduos são perseguidos, violentamente atacados ou mesmo mortos devido à sua orientação sexual.

Quer seja explícita, quer não, a violência homofóbica causa um enorme sofrimento, que é frequentemente dissimulado sob um véu de silêncio e vivido na solidão.
Chegou o momento de fazermos ouvir nossa voz. Embora a responsabilidade pelos crimes motivados pelo ódio recaia sobre os que os cometem, todos temos a obrigação de combater a intolerância e o preconceito e de exigir que os agressores respondam pelos seus atos.

A prioridade inicial é descriminalizar a homossexualidade. Em mais de 70 países as pessoas podem sofrer sanções penais devido à sua orientação sexual. Essas leis expõem os indivíduos à detenção, à prisão, até a tortura ou mesmo à execução e perpetuam o estigma, além de contribuir para um clima de intolerância e de violência.
Ainda que importante, a descriminalização é apenas o primeiro passo. A experiência mostra que são necessários maiores esforços para combater a discriminação e a homofobia.

Infelizmente, acontece com demasiada frequência que aqueles que deveriam usar de moderação ou exercer a sua influência para promover a tolerância fazem exatamente o contrário, reforçando os preconceitos.
Em Uganda, por exemplo, onde a violência contra as pessoas com base em sua orientação sexual é comum, um jornal, no dia 2/10, publicou uma matéria na primeira página identificando cem ugandenses como gays ou lésbicas, colocando ao lado de suas fotos a frase: "Enforquem-nos".
Temos que denunciar esse tipo de jornalismo como aquilo que é: incitamento ao ódio e à violência.

No país, os ativistas de direitos humanos que defendem os direitos de gays, lésbicas, bissexuais ou transexuais correm o risco de serem perseguidos ou detidos.
No mês passado, em Genebra, falei sobre a descriminalização da homossexualidade em um painel promovido por um grupo de 14 países.
No evento, o arcebispo emérito Desmond Tutu manifestou seu apoio, falando apaixonadamente sobre as lições do apartheid e sobre o desafio de assegurar a igualdade de direitos para todos: "Sempre que um grupo de seres humanos é tratado como inferior por outro, o ódio e a intolerância triunfam".
Não deveriam ser necessárias mais centenas de mortes e espancamentos para nos convencer disso.

Compete a todos nós exigir a igualdade para nossos semelhantes, independentemente de orientação sexual e de identidade de gênero.

NAVI PILLAY é alta-comissária das Nações Unidas para os direitos humanos.

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quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Amor em tempos de cólera

Refletir sobre os laços amorosos na contemporaneidade é algo pra lá de complexo. Sabemos o quanto às relações sociais vêm sofrendo em termos de mudança até mesmo de paradigmas. As inovações trazidas para os laços entre o masculino e feminino marcam, de certa maneira, o sentimento de solidão do qual muitos sujeitos se queixam.

Entendemos que os vínculos afetivos se constituem na "liga" que permeia todo fazer humano. Esses laços são, como diria o próprio Freud, nosso paraíso e ao mesmo tempo fonte do mais cruel dos sofrimentos. Chega a afirmar que: "O sofrimento oriundo dessa fonte é talvez o mais duro para nós do que qualquer outro"(Mal Estar na Cultura). A dor da perda do objeto de amor, daquele que em um entrelace entre realidade e projeção se torna o depositário do que J. -D Nasio irá nomear como o organizador das pulsões. "De fato, a ruptura de um laço amoroso provoca um estado de choque semelhante àquele desencadeado por uma violenta agressão física: a homeostase do sistema psíquico é rompida, e o princípio de prazer abolido".( J. -D Nasio – "A Dor de Amar)

Frente a uma modernidade (ou pós-modernidade) onde a dor ganhou contornos de pecado, o amor tanto é a esperança como uma grande ameaça, algo que pode jogar o sujeito no mais temido pela organização social – o sofrimento. Permeiam então, e atravessam as relações, algo que apontará para o novo, como um descompromisso e uma relação sempre na superficialidade dos afetos ou remeterá ainda, à fuga pela aceitação de velhos paradigmas, e na manutenção de relações onde o vínculo afetivo se rompe e restam compromissos estéreis, ligados a uma velha ordem social em franco processo de mutação. Ante uma ou outra possibilidade, restará a esse sujeito a vivência de uma grande angústia e um esvaziamento afetivo e pulsional em relação a sua realidade e mundo externo. A dor, essa grande ameaça que acaba por montar um muro de indiferença que marcam as relações contemporâneas aponta como primeira premissa a ser evitada.

" 'Nunca estamos tão mal protegidos contra o sofrimento como quando amamos, nunca estamos tão irremediavelmente infelizes como quando perdemos a pessoa amada ou seu amor'(Freud). Acho essas frases notáveis porque elas dizem claramente o paradoxo incontornável do amor: mesmo sendo uma condição constitutiva da natureza humana, o amor é sempre a premissa insuperável dos nossos sofrimentos. Quanto mais se ama, mais se sofre"(Nasio)

Constroem-se mil hipóteses para a solidão do homem moderno que, contraditoriamente a isso, constrói em tecnologia aparatos que falam todo tempo em relações em rede, conectividade, quebra do paradigma do individualismo para alguns pesquisadores. Fica parecendo um algo incompreensível e inapreensível. Esse homem é indiferente ou sofre? Está em relação mais do que nunca ou se isola cada vez mais? Avança no sentido de sofrer menos exigências morais da cultura ou se enclausura cada vez mais nelas? Questões e mais questões são levantadas quando pensamos nesse sujeito e suas relações de vínculo. A psicanálise do ser social ou aquela que dirige seu foco para as relações objetais, mais do que nunca é chamada a "falar", a expor o latente em uma representação aceitável para os níveis de recalque operados pela cultura.

Se a tecnologia avança cada mais em seu poder de destrutividade, avançará também em suas possibilidades de união fraterna? Perguntas irrespondíveis, pelo menos por hora. Podemos supor que o embrião dessa união fraterna nasce ali do vínculo que une dois parceiros em busca desse amor, apoiados em suas matrizes que os remeterão ao seu primeiro objeto de amor, igual para ambos, suas mães ou quem exerceu essa função. Dizem que os novos tempos trazem atrelados modelos de união perversa, isso dito naquilo que ela tem de mais cruel, a perversidade como traço. Será mesmo que isso é o que se dá? Ou poderíamos pensar em toda uma proteção perversa em relação a dor que as relações fast-food podem provocar em nossa instável organização pulsional? Fusão e desfusão, Eros e Thanatus, na balança que movimenta o ato da vida. Por outro lado essa instabilidade aponta e remete para a possibilidade de relações criadas e mantidas apenas por fortes laços afetivos, onde normas sociais não serão mais a grande mortalha do amor. Esperança, tema que a psicanálise em alguns de seus setores tem voltado o seu olhar.

Talvez possamos pensar nos discursos erguidos contra as novas formas de amar como uma resistência à mudança que se opera irremediavelmente em nossos contornos sociais. Ergue-se então toda uma falácia religiosa em torno do tema, alguns setores atacam as novas constituições familiares em um claro movimento de retrocesso e resistência.

Mais uma vez o velho Freud nos ajuda a refletir em sua obra "O Futuro de Uma Ilusão":

"É duvidoso que os homens tenham sido em geral mais felizes na época em que as doutrinas religiosas dispunham de uma influência irrestrita; mais morais certamente não foram".

Isso talvez esteja atravessando e alimentando todo medo que hoje se ergue em torno desse amor de parceria, desse encontro amoroso entre dois seres. O luto que a sociedade insiste em ver como algo a ser evitado, algo que queima tanto a visão quanto queima olhar para nossa condição incontornável de sermos seres com uma finitude determinada desde o nascimento.

"O luto não é nada mais que uma lentíssima redistribuição da energia psíquica"(Nasio). Só poderemos nos entregar ao amor se pudermos lidar com a existência da perda, não como algo onde morremos, mas o próprio caminho que permeia a vida. O que existe em cada passo que damos.

Há um trecho interessante nessa obra de J.-D.Nasio citada, onde ele expõe a fala de um analisando frente a perda de sua mãe, talvez ela exemplifique muito bem o que abordamos aqui, diz:

"Uma parte dela está desesperadamente viva em mim, e uma parte de mim está sempre morta com ela".

A possibilidade dessa cronificação da dor afasta qualquer possibilidade de investimento amoroso construtivo e prazeroso. O chão do amor e dos vínculos nos remete à própria construção freudiana, a toda a complexidade fusional, onde união e desintegração caminham sempre fusionados. Resiste o conceito de amor que quer banir a possibilidade de perda, a sociedade cultua frases como aquela terrível da obra que atravessou gerações "O Pequeno Príncipe", onde se lê: "Tu te tornas eternamente responsável por tudo aquilo que cativas". Que terrível presságio!

Resta então a solidão da modernidade, o afastamento dos vínculos enquanto o caminho do amor e da construção fraterna. Seres solitários ou acompanhados padecem da capa da indiferença e do cinismo afetivo.

Volto a Freud em "O Futuro de Uma Ilusão", para lançar uma luz de esperança para a modernidade das relações, sem o sentimentalismo deliróide do "amai ao próximo", seja ele quem for; nessa passagem linda onde nos faz refletir:

"Meu amor, para mim, é algo valioso, que eu não devo jogar fora sem reflexão. A máxima* me impõe deveres para cujo cumprimento devo estar preparado e disposto a efetuar sacrifícios. Se amo uma pessoa, ela tem de merecer meu amor de alguma maneira. (Não estou levando em consideração o uso que dela posso fazer, nem sua possível significação para mim como objeto sexual...). Ela merecerá meu amor se for de tal modo semelhante a mim, em aspectos importantes, que eu me possa amar nela; merece-lo-á também, se for de tal modo mais perfeita do que eu, que nela possa amar meu ideal de meu próprio eu(self)".

*diz respeito à máxima: "Amarás a teu próximo como a ti mesmo"

Que o amor de Eros seja valioso em sua capacidade de unir pelo laços afetivos de investimento, longo caminho que percorremos em busca da tal felicidade, seja ela aquela que fala de nossos egos individualizados, seja ela aquela que compõe o vasto tecido das relações sociais e da civilização.

Entre a solidão, o desamparo e os vínculos, que possamos construir relações amorosas e de resgate do conceito de Ideal do Ego, onde encontros e afinidades permeiem o que não é sublimável, naquilo que o encontro amoroso tem de sexual propriamente dito e que a partir desse encontro, possamos construir ideais que lancem o mundo na tal fraternidade que Freud aponta em seu texto "Psicologia das Massas e Análise do Ego".

"Solidão que nada..."

Olhar para o modernidade das relações em seus aspectos de progresso e em seus aspectos de resistência à mudança. Que nosso olhar não envelheça e que a psicanálise permaneça transgressora como o velho Freud sempre a sonhou. Que a solidão da qual falam muitos teóricos seja o caminho para construções afetivas mais saudáveis, um rito de passagem. Nascemos sós, e ao mesmo tempo, toda psicologia é em última instância, objetal e fala de relações de vínculos.

Por Denise Deschamps